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terça-feira, novembro 04, 2003
 
GUITAR AND PEN

(a coluna do Sancler)

O talento e sua falta

Acabei de assistir a um filminho bastante interessante cujo título original é Max (acho que ainda não saiu por aqui) e que possui uma premissa interessante: teria o sucesso como artista evitado que Adolf Hitler se envolvesse seriamente com a política?

Será que sua aceitação no meio artístico da época teria evitado que seu impulso natural de se tornar "grande" tomasse o rumo de uma guerra mundial e da industrialização do extermínio de seres humanos?

Foi a completa falta de talento como pintor que fez com que desenvolvesse sua capacidade como retórico e propagandista do movimento nazista?

É claro que o filme é um exercício ficcional, que abusa da liberdade histórica em nome do enredo, mas ainda assim dá um pouco o que pensar: será que todo grande artista é um cruento ditador? Ou que todo ditador, todo político-filho-da-puta, toda pessoa que deixa a "autoridade" subir-lhe à cabeça e age como autêntica "otôridade" seria apenas mais um artista frustrado?

Talvez nosso atual alcaide seja apenas um pintor gorado, um cantor cujos esforços infrutíferos para aparecer no programa do Chacrinha tenham se acumulado no fígado, daí o cheiro de desforra que cobre sua administração desse feudo em que transformou a cidade, loteando-a a seu bel-prazer.

Quem sabe tenhamos escapado de algo pior que o golpe militar de 64: Roberto Carlos poderia ter se transformado num grande político e chegado ao poder no lugar de algum dos presidentes militares e se tornado um Pinochet tupiniquim, perpetuando-se no poder e descontando toda sua fúria e recalque nos descendentes daqueles que não compraram seus discos.

Brincadeira à parte, o que gostei no filme (além da atuação de Noah Taylor como Hitler) foi que me deixou pensando por alguns momentos sobre a arte e aquilo que leva muitos de nós a tentar caminhar nesse terreno imprevisível e falsamente mapeado para, no final, sermos frustrados, e se isso vale realmente a pena.


Sempre achei que a arte, qualquer uma, fosse algo completamente inútil (como Oscar Wilde já havia escrito), daí poder ser considerada arte (acho que torturar pessoas ao som ensurdecedor de qualquer tipo de música tira a "articidade" tanto do objeto quanto da ação); e devo esclarecer que a "inutilidade" da arte é naquele sentido utilitarista-concreto da coisa, ou seja, podemos viver sem arte, mas não sem comida, água e oxigênio e etc.

Porém, mesmo achando que a arte em geral não possui uma "utilidade" concreta, reconheço que esse vício de criação e interpretação artística já mudou a vida de muita gente (e continua a arranhar um pouco da minha própria existência), mesmo que num sentido restrito, local ou íntimo, e que, talvez, se não fosse por esses milhares (milhões?) de artistas frustrados que andam pelas ruas e que trabalham e se casam e bebem e têm filhos e pagam impostos e compram porcarias e votam e xingam, essa droga desse planeta fosse um lugar bem pior, onde notas musicais não fossem cantaroladas e onde imagens e palavras não alcançassem aquele lugar bem lá no fundo da alma da gente, que muitas vezes esquecemos que existe, e que, por bem ou por mal, ajuda a todos nós a agüentar mais um dia de sol e incerteza. Ou seja: vale a pena.



segunda-feira, novembro 03, 2003